quinta-feira, 21 de julho de 2016

Uma nota a respeito do “combate à doutrinação nas escolas”

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A despeito da intenção de combater o que identifica como “doutrinação” de alunos por professores, um blog chamado “Escola Sem Partido” – que reúne a nata azeda da direita mais ardilosa e ressentida do país – promove na verdade uma campanha de perseguição contra o pensamento marxista ou, antes, a qualquer coisa que assim lhes pareça adequado classificar, de acordo com parâmetros retirados da mais plena ignorância e/ou da mais rebaixada má-fé.

Pois a tropa do impolutos guerreiros da imparcialidade enxerga, com pleno apuro, um interesse ideológico no marxismo que não possui – e nem deseja possuir – a universalidade olímpica que a educação deve almejar, se quiser realizar-se com a perfeição que lhe cabe por definição e honradez.

Mas em que medida pode existir um puro desinteresse (social e político) no saber, ou em que medida essa suposta neutralidade social e política não seria apenas uma ficção (contrária, pois, inclusive a interesses legítimos numa educação humanista e crítica) para uso doutrinário e abuso político, é algo que talvez passe ao largo dessa militância “anti-doutrinária”. Talvez não.

Os sujeitos que escrevem no blog são explícitos ao pregarem que a “doutrinação” ocorre apenas no pensamento que diverge da verdadeira doutrina, digo, da imaculada concepção – um ideário mal ajambrado que gravita entre o neoliberalismo e o neoconservadorismo, tão “neos” quanto inconsistentes. Tudo aquilo que ideologicamente se coloca à esquerda, ou seja, na perspectiva social do trabalho, é tachado pejorativamente de “doutrinário”, de “emburrecimento”, “contaminação” político-ideológica, etc. É tal como se verifica no subnível do entendimento religioso mais ou menos consciente de seu sectarismo: “a minha teologia foi escrita pelo próprio deus, as teologias alheias são apenas formas de idolatria satânica e ignorância da Verdade, etc”.

De forma ingênua ou, ao contrário, maliciosa, trata-se de fazer alguém acreditar (e é claro que as montanhas de desavisados embarcaram) que a proposta não possui “qualquer espécie de vinculação política, ideológica ou partidária”; como quem pretende que suas “idéias” ou, em termos mais concretos, seu posicionamento político, ideológico e doutrinário se situe acima das questões em debate na sociedade, acima dos conflitos e das lutas, acima dos antagonismos de interesses que estão postos pela própria situação dos indivíduos na relação social travada em torno da reprodução da sociedade. Ou seja, que seu discurso não seja ideológico, quando, na verdade, o é totalmente; que não seja político, quando o é integralmente; que não seja partidário, quando, mesmo não vinculado a nenhum partido específico, toma partido nas questões que me referi acima.

Além disso, se observarmos o que de fato ocorre nas escolas, fica fácil de perceber que professores que criticam e deturpam Marx, o socialismo e demais alvos da “anti-doutrinação” não estão na exceção, e sim na regra, enquanto defendem o empreendedorismo da venda de balas no sinal em direção ao futuro e certeiro cargo de executivo numa multinacional.

 Ora, se os alunos – “nossos intocáveis filhos” – quiserem entrar para o PT ou pro DEM, para uma religião qualquer, ter “orgulho” de serem brancos, brasileiros, héteros etc. (coisas nas quais a persistência certamente exige muito esforço), não cabe a ninguém bancar o paradoxal “anti-doutrinador” que lhes descerá goelas abaixo uma doutrina da “emancipação”. Que sigam o que lhes der na telha e errem por conta própria, pois nada pode ser mais contrário ao aprendizado e ao exercício de alguma liberdade e autonomia que esse discurso da “defesa de meu filho”.

A idéia de que haja ou possa haver essa tal “doutrinação” dos alunos por parte dos professores pressupõe 1) que os alunos recebam passivamente aquilo que os professores dizem em aula, como numa espécie de “lavagem cerebral” em laboratório, o que só existe em ficções das mais tolas; 2) que o próprio mundo humano não esteja permeado por idéias políticas, vindas de todos os lugares, e bem mais dos meios de comunicação (incluindo blogs) do que da escola – mas quem proíbe os filhos de assistir à TV, acessar a internet e sair do quarto?; 3) que o caráter político e ideológico dos assuntos que um professor aborda em sala de aula seja necessariamente danoso à formação cidadã do aluno; 4) que tal caráter político e ideológico não esteja presente também na metodologia de ensino, e que haja assuntos, áreas e conteúdos ideológica e politicamente neutros.

Tudo isso quando, ao contrário, ser “doutrinado” por uma ideologia ou muitas, bem como pela crítica às ideologias, não apenas é inevitável, como também faz parte da formação para a vida em sociedade. “Defender” o filho contra o próprio mundo, encerrando-o numa bolha contra tudo que o mundo lhe traz, o tempo todo, de ideologias e informações, isso sim é deletério. O desenvolvimento de uma consciência crítica não passa por se colocar à distância das ideologias, mas pelo saber que elas existem, porquê elas estão aí e o que elas dizem, para que o indivíduo possa formar uma posição própria a respeito delas. E isso vai acontecer de um jeito ou de outro, independente das intenções doutrinárias dos pais e dos professores.

Não digo que devamos “respeitar” o conteúdo de uma ideologia, como se isso fosse o mesmo que respeitar o indivíduo que as abraça. Tudo pode e deve ser colocado em discussão. E nesse processo, por vezes mais lento e contraditório que gostaríamos que fosse, o indivíduo vai lapidar o seu próprio posicionamento. Tal como estamos fazendo neste exato instante, e ao longo de nossas vidas, sempre.



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